A Doutrina Social da Igreja foi o tema abordado nessa semana, pelo Pe. Gil Raul Pereira Júnior, Vigário Geral da Diocese do Rio Grande e Pároco da Catedral de São Pedro, no programa “Partilhando”, que é uma produção da Pastoral de Comunicação da Arquidiocese de Pelotas, sob coordenação do Professor Manoel Jesus e Lupi Scheer dos Santos. Embora a amplitude do tema não caiba em um único programa, o objetivo foi aprofundar um pouco mais sobre o assunto.

 

          Padre Gil iniciou o programa contando sua história. Com 30 anos de sacerdócio, Padre Gil começou no Seminário de Pelotas, depois fez Filosofia no Colégio Máximo Palotino em Santa Maria, seguido pelo Curso de Teologia no Seminário Maior de Viamão. Em 2000, foi para a Áustria, onde ficou três anos, fazendo mestrado em Teologia e sendo capelão dos brasileiros lá. Ele já exerceu as mais diferentes funções na Diocese do Rio Grande e, desde 2016, com a gestão de Dom Ricardo Hoepers, atua como como vigário geral e chanceler. Ao mesmo tempo, acompanha vários movimentos, pois, segundo ele, “onde precisa, a gente vai dando o nosso sim”.

 

          Para começar, Padre Gil já ponderou que existe um preconceito muito grande em relação a Doutrina Social da Igreja, principalmente pela falsa ideia de que é coisa só da Teologia da Libertação. “Doutrina Social da Igreja é doutrina da Igreja. Ou seja, tem que ser assumida por cada cristão, por cada católico, cada padre”, pontuou. O principal erro, segundo ele, é a ideia equivocada de que, quando se fala em doutrina da igreja, se fala só de coisas espirituais. “Lógico que existe a dimensão espiritual e teológica, só que a doutrina social da igreja também faz parte de toda uma reflexão sobre uma ação social que a Igreja sempre teve, desde as suas origens”, explicou.

 

          Ele ilustrou com os Atos dos Apóstolos, capítulo 6, onde se vê a preocupação que a primeira comunidade apostólica tinha com relação aos mais pobres daquele tempo, as viúvas e os órfãos. E, antes disso, Jesus mesmo, quando vem a nós pelo mistério da encarnação, vem justamente ao encontro de todas as fragilidades humanas. “E é bonito da gente ver em diversas passagens dos evangelhos, Jesus quando está diante de alguém necessitado, Ele sente compaixão. Ele se compadece, que significa padecer junto”, citou.

 

          É possível ver essa preocupação social que Jesus tem, que vai se manifestar na Igreja Apostólica na primeira comunidade. Paulo também fazia coletas para as comunidades mais pobres de Jerusalém e outros lugares. Porém, somente no século XIX, é que esse pensamento começa a ser sistematizado. Antes existia o trabalho e a missão, mas somente a partir da Rerum Novarum, encíclica escrita pelo Papa Leão XIII, em 1891, começa a ser sistematizado o pensamento da Igreja sobre as novas realidades sociais advindas com a Revolução Industrial.

 

          Padre Gil situou que, já no final do século XVIII, a filosofia, o pensamento, a tecnologia e a Revolução Industrial propunham novos desafios, mas a Igreja estava sempre com o freio de mão puxado. Somente com o Papa Leão XIII que se começou a refletir sobre essa realidade sob o ponto de vista cristão. Ou seja, um olhar voltado para quem estava começando a trabalhar nesse mundo mais urbano, mais industrial, toda a questão do direito de propriedade e toda essa reflexão social que estava sendo questionada também pelo pensamento marxista. A Igreja passou a dar uma resposta cristã para esses desafios.

 

          Em sua explanação, o vigário geral da Diocese do Rio Grande lembrou que a Igreja já fazia um trabalho social voltado aos mais pobres, mas a Rerum Novarum foi a primeira encíclica social que começou a sistematizar esse pensamento. Depois veio a Carta Encíclica Quadragesimo Anno, em 1931, no 40º aniversário da Rerum novarum, quando o Papa Pio XI retoma toda essa reflexão social, já em um outro momento, onde surgia uma extrema direita muito forte, tanto na Alemanha, com o nazismo, como na Itália, com o fascismo. A partir daí, padre Gil destacou, segundo ele, com orgulho, que todas as demais encíclicas sociais tiveram uma influência muito grande de um bispo brasileiro, Dom Helder Câmara, um grande nome do Concílio Vaticano II.

 

Divisor de águas - O Concílio Vaticano II, na opinião do padre Gil, não é um fenômeno estanque, pois houve toda uma caminhada anterior, com vários movimentos no início do século XX, como os movimentos litúrgico, bíblico e ecumênico. Além disso, a partir do Papa Pio XI, que foi um revolucionário do seu tempo, surgiu a Ação Católica que, na sua opinião, foi o grande boom de um laicato atuante na Igreja. “Até então, os leigos tinham três posições na Igreja: sentados para ouvir o padre falar, de joelhos para rezar pelo padre e de pé para colocar a mão no bolso para dar dinheiro para o padre”, ironizou o padre, destacando que, com o advento da Ação Católica, os leigos começaram a assumir um protagonismo muito grande na Igreja.

 

          O Concílio Vaticano II teve como objetivo colocar a Igreja dentro da realidade do século XX. Para padre Gil, muitos dizem de modo equivocado que o concílio não teve nenhuma grande decisão teológica. Ele discorda, dizendo que o concílio trouxe muitas decisões teológicas interessantes, como, por exemplo, o sacerdócio comum dos fiéis e a colegialidade do episcopado. Afirmou ainda que Dom Helder Câmara teve um papel preponderante, pois embora não tenha feito nenhum discurso no concílio, foi decisivo nos bastidores, junto com outros cardeais, trabalhando questões importantes, especialmente na última sessão.

 

          “Podemos dizer que a grande filha de Dom Helder Câmara foi a constituição pastoral Gaudium et Spes, que parte de uma visão extremamente positiva do mundo”, afirmou. Padre Gil destacou a beleza do início dessa que é considerada a Carta Magna da Pastoral Social: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. E não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”.

 

          Esse documento, segundo ele, vai impactar a Doutrina Social da Igreja. “Nessa primeira frase do documento, estão os pontos que considero fundamentais. Pois fica implícito que todas as realidades humanas são boas, com a superação de um dualismo que sempre esteve muito presente até então, ou seja, a divisão bem e mal, corpo e alma, céu e mundo. Dessa forma, se todas as realidades humanas são boas, não existe realidade alguma que não encontre eco no coração da Igreja. Ou seja, o coração da igreja é um coração grande suficiente, como o coração de Deus, para acolher toda a humanidade”, explanou. Esse olhar positivo, na interpretação do padre Gil, faz que a própria Doutrina Social da Igreja não seja uma coisa azeda, mas sim algo positivo, vendo a beleza da dignidade humana, a beleza do mundo e das obras humanas.

 

Nesse sentido, como professor de Teologia Antropológica, padre Gil lembrou de uma reflexão que fazia sobre a criação, naquele poema de Genesis 1, Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo ele descansa. “Por que ele descansa, para ficar de folga?”, questionou. Segundo o pároco da Catedral de São Pedro, é porque o sétimo dia é o dia em que o ser humano vai completar a obra da criação com o seu trabalho. Ou seja, o sétimo dia consiste no ser humano trabalhar para transformar a natureza e continuar essa obra criadora de Deus. “A Igreja olha para as dores e sofrimentos da humanidade sim, afirmou, mas sempre dessa atitude propositiva, de trabalhar e construir juntos”.

 

Caminhada da Igreja na América Latina - Padre Gil se diz devoto de Dom Helder Câmara, considerando-o um bispo revolucionário para seu tempo, pois não só se tornou um dos grandes nomes da Teologia da Libertação como também é pai da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e um dos fundadores do CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano, cujo primeiro encontro foi no Rio de Janeiro. Quando acabou o concílio em 1965, Dom Helder provocou o Papa Paulo VI para motivar a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano (CELAM) e foi convocado para Medellín, na Colômbia, em 1968, quando o Papa veio fazer a abertura do encontro.

Padre Gil disse que é importante considerar que o continente americano, nos anos 60, vivia uma época de ditaduras de extrema direita e a Igreja se tornou a grande força de oposição a essas ditaduras. O encontro de Medellín promoveu as chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), pequenas comunidades nas periferias e zonas rurais onde se começou um trabalho de pastoral popular com a formação de vários ministérios leigos. “Com as CEBs, que se espalharam por todo o Brasil e América Latina, a Igreja foi colocando a bíblia na mão do povo e promovendo todo um trabalho de evangelização”, pontuou.

 

“Uma leitura que faço é que, com o passar das décadas, houve um processo de redemocratização na maior parte dos países da América Latina e a Igreja foi se adaptando aos novos tempos, com novas roupagens e novas estruturas. Aí começa a existir um maior trabalho com os movimentos, com o trabalho de evangelização, sem perder a dimensão social”, refletiu padre Gil.

 

Na sua opinião, nos dias atuais, é preciso avançar no fim da polarização, por exemplo, na política atual, onde existe “o meu grupo”, “a minha ideia”, que é totalmente inimiga de outro grupo e outra ideia. Citou uma frase do Padre Flávio, nas Missões Populares, em Pelotas, em 1997: “A Igreja é um grande jardim com muitas flores. Se no jardim tem uma única espécie de flor e um único tipo de cor, o jardim é bonito, mas é um tédio. Quanto maior o número de espécies e cores, mais bonito o jardim fica”. Por isso a Igreja é esse grande jardim que tem, desde pastorais sociais, comunidades de bases, teologia de libertação, mas também espaço para diversos movimentos. Para ele, a riqueza é quando percebemos que o outro possui riquezas espirituais e pastorais que vão completar aquilo que eu vivo. E assim, entende, a Doutrina Social não é só para quem está ligado às CEBs e TL; é para todos que também podem aprender com os diferentes.

 

 Para finalizar, padre Gil convidou a estarmos muito atentos ao que fala e ensina o Papa Francisco, porque será decisivo para a história da Igreja nesse começo de milênio. “Quando ele foi eleito, a Igreja estava numa crise muito grande, parecia que não tinha saída. E o Espírito Santo veio trazê-lo lá do fim do mundo, como ele mesmo gosta de dizer, para nos ensinar a alegria do evangelho, a alegria que é conhecer, amar e servir Jesus. Que possamos aprender muito com o Papa Francisco, ele está colocando de novo o Concílio Vaticano II na ordem do dia, na vida da Igreja”, frisou.